A guerra pela pílula rosa ( Época )
Jornalista: Marcela Buscato
Quando a pílula azul que revolucionou a vida sexual dos homens foi lançada, em 1998, acreditava-se que logo surgiria um remédio equivalente para as mulheres. Se o Viagra, inicialmente pesquisado para doenças cardiovasculares, resolvia a dificuldade de obter uma ereção, seu correspondente feminino teria o desafio de tratar as reclamações frequentes - e subjetivas - de falta de desejo entre as mulheres. É algo que ao menos 30% das brasileiras conhecem: a vontade de fazer sexo míngua até virar pouco mais que uma lembrança. "Essa reclamação é comum entre mulheres maduras que estão há anos num relacionamento estável", afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade, da Universidade de São Paulo (USP). Passados 17 anos do lançamento do Viagra, a cobiçada pílula rosa continua apenas um sonho - para as mulheres e para a indústria farmacêutiéà'; que vislumbra a possibilidade de ganhar bilhões com o "Viagra feminino".
O desafio científico sempre foi a explicação para a demora. Encontrar uma substância capaz de controlar algo tão etéreo quanto o desejo não é fácil. Agora, um movimento nos Estados Unidos afirma que o problema não está nas bancadas dos laboratórios. É político.
A iniciativa Even the Score (empate o jogo, na tradução para o português, no sentido de produzir equilíbrio e justiça) atribui a dificuldade na aprovação do medicamento a um viés sexista das autoridades de saúde americanas. "Hoje, 26 drogas são vendidas para disfunções masculinas, mas não há uma única aprovada para mulheres", escreveu a americana Susan Scanlan, porta-voz do movimento, num artigo divulgado na imprensa americana. A maioria dos medicamentos contra impotência é apenas uma versão diferente de um mesmo tipo de droga. Mas, posto em números, o placar farmacêutico transformou a busca pela pílula rosa numa batalha dos sexos.
O principal alvo do movimento -formado por uma coalizão de entidades de saúde e de direitos das mulheres - é a agência do governo americano que regula os medicamentos, a Food and Drug Administration (FDA). Ela analisa os estudos sobre a eficácia e a segurança de novos remédios e pode autorizar ou negar seu uso no país. Os representantes do Even the Score dizem que os especialistas da FDA são excessivamente zelosos com as drogas para mulheres: não aceitam efeitos colaterais que os ativistas consideram leves, como tontura e sonolência. Por outro lado dizem, a FDA já aprovou medicamentos para disfunção erétil, como o Via-gra, que pode causar queda de pressão grave em pessoas tratadas com drogas vasodilatadoras à base de nitratos. "A FDA deixa os homens decidir se querem correr riscos, mas nega às mulheres o direito de escolher", escreve Susan.
A ação mais visível do Even the Score acontece na internet. Circulam pelas redes sociais convites para internautas assinarem petições virtuais exigindo a aprovação de um Viagra feminino. Sob a hashtag "eventhescore" e " womendeser-ve" ("as mulheres merecem"), tuítes disparam fatos sobre problemas sexuais femininos. Vídeos com depoimentos de médicos divulgam a relevância do problema. Uma campanha pede para mulheres compartilharem uma foto nas redes sociais segurando um cartaz com os dizeres "Mulheres merecem....". O objetivo é levar leitoras e leitores a refletir sobre a dificuldade feminina de chegar ao prazer. Entre o grande público, a campanha não é exatamente um sucesso de popularidade, mas a pressão chegou à FDA. Quatro congressistas americanas enviaram uma carta à agência pedindo que os mesmos critérios usados para avaliar as drogas para os homens sejam aplicados à drogas femininas.
Ao mesmo tempo que causa ruído e obtém repercussão, o Even the Score é questionado por especialistas de saúde e grupos de defesa dos direitos femininos. "É uma campanha de marketing", afirma o jornalista Ray Moynihan, que pesquisa o uso excessivo e desnecessário de medicamentos na Universidade Bond, na Austrália. Ele é autor do livro Sex, lies andpharmaceuticals (Sexo,
mentiras e produtos farmacêuticos, sem edição no Brasil). Ele diz que a campanha se apropriou indevidamente da linguagem feminista para conquistar simpatia pela sua causa. "Essa forma de ação ameaça o método científico usado para avaliar as novas drogas", diz Moynihan. "Os critérios podem deixar de ser científicos para se tornar políticos." Não é coincidência que três empresas farmacêuticas, a Sprout Pharmaceuticals, a Palatin Technologies e a Trimel Pharmaceuticals, apareçam no site do Even the Score como apoiadoras. Elas são, talvez, a parte mais interessada do processo. "E importante para as mulheres ter opções", afirma Curtis Geoff, porta-voz da Sprout. "Temos esperança de que a aprovação do flibanserina (o nome do produto que está sendo analisado pela FDA) abrirá portas para outros tratamentos no futuro."
Do ponto de vista das empresas, faz sentido pressionar a FDA. Além de autorizar o acesso ao bilionário mercado americano, a agência influencia fora das fronteiras dos Estados Unidos. Suas decisões servem como referência para órgãos reguladores no mundo inteiro.
Por que a FDA não autoriza a venda dos novos medicamentos? A resposta não é simples. Até hoje, apenas duas drogas foram submetidas à análise da FDA. Ambas foram reprovadas. A primeira, em 2004, foi um adesivo com o hormônio testosterona, recusado pela falta de evidências sobre sua segurança a longo prazo. A segunda, a flibanserina, a aposta da Sprout Pharmaceuticals, foi rejeitada duas vezes: em 2010 e 2013. A FDA considerou que os efeitos colaterais (tontura, sonolência e náuseas)
não compensam os benefícios. Um dos estudos sugere que foi mínima a diferença entre os resultados nas mulheres que tomaram a droga e nas que usaram uma substância sem efeito algum, o placebo. "A indústria farmacêutica ainda não conseguiu mostrar que as drogas funcionam melhor que os placebos", diz a advogada americana Coco Jervis, uma das diretoras da entidade americana Rede Nacional pela Saúde da Mulher. A organização faz parte do grupo que se opõe à aprovação de uma nova droga na marra. Teme que a existência de um "Viagra feminino" transforme dificuldades sexuais que podem ter causas psicológicas num desequilíbrio químico a ser resolvido por uma simples pílula. "Como as empresas são guiadas pelo lucro, se a solução do problema não estiver dentro de um frasco, não interessa para elas", diz Coco.
A necessidade de uma droga para resolver a falta de desejo sexual feminino está longe de ser um consenso entre médicos e psicólogos. Não há dúvidas
de que há mulheres que sofrem muito com a falta de desejo e excitação - a disfunção está prevista no Manual de transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria. "O problema existe, mas é uma utopia acreditar que uma pílula será a solução mágica", diz o ginecologista e sexólogo brasileiro Théo Lerner. "A maior parte dos casos tem fundo emocional." Doenças como o diabetes e medicações como os anti-depressivos afetam o nível de interesse sexual. Quando essas variáveis são descartadas, percebe-se que a origem de boa parte dos casos são conflitos dentro do relacionamento ou bloqueios ao prazer feminino causados por tabus morais e culturais. "Desde muito cedo, recebemos mensagens de que sexo é vergonhoso e perigoso", diz a americana Emily Nagoski, especialista em comportamento sexual. Muitas mulheres não sofrem de falta de interesse sexual. Precisam ser devidamente estimuladas -física ou eroticamente - para que o desejo surja. "Elas não têm um problema biológico. Só não criam um contexto para que ele floresça", diz Emily.
Uma experiência da psicóloga americana Laurie Mintz, da Universidade da Flórida, mostra que abordagens comportamentais são eficazes para tratar o problema. Mulheres que tomaram um placebo e voluntárias que leram um
livro de autoajuda sobre sexo (escrito pela própria Laurie) relataram melhorias parecidas na vida sexual, mas com uma diferença. O nível de satisfação entre as leitoras durou mais semanas que entre as mulheres que tomaram o placebo. "Se é possível conseguir os mesmos resultados sem os efeitos colaterais dos remédios, por que continuamos a procurar por essas drogas? A única explicação é o ganho financeiro das empresas", diz Laurie.
Os efeitos colaterais são outra preocupação. Enquanto o Viagra é usado apenas antes das relações sexuais, drogas como a flibanserina teriam de ser ingeridas diariamente. Elas podem ter efeitos desconhecidos sobre a química cerebral a longo prazo. "Os analistas da FDA não são preconceituosos", diz a psicóloga Leonore Tiefer, líder do grupo The New View Campaign, uma das principais vozes a se opor a uma droga. "Eles apenas consideram todos os aspectos. As informações vindas de pessoas contratadas pela indústria é que são enviesadas."
Ainda é cedo para saber se a pressão terá efeito sobre as decisões da FDA. A agência já declarou que tratamentos para disfunções sexuais femininas estão entre suas prioridades e convocou, no fim do ano passado, uma reunião para discutir o assunto. O Even the Score levou mulheres para relatar o sofrimento causado pela falta de desejo. Especialistas deram sua opinião contra e a favor. Agora, o debate prossegue. Quatro empresas já anunciaram a intenção de apresentar suas drogas nos próximos anos. A FDA se tornará mais sensível a elas?
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